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15 maio 24 Secção Regional LVT

“Trabalhadores constroem para trabalhadores”. O SAAL de Lisboa revisitado na Ordem dos Arquitectos

O livro coordenado pelo arquiteto Ricardo Santos e pela socióloga Ana Drago “Cidade Participada: Arquitectura e Democracia. Lisboa” foi tema de uma conversa na sede da Ordem dos Arquitectos a 15 de abril, que contou com a participação especial de Eugénio Castro Caldas.

O arquiteto Eugénio Castro Caldas foi membro da Brigada de Apoio Local da operação SAAL das Fonsecas e Calçada. “Foi a atividade profissional mais interessante que vivi, mesmo que não tenha apanhado o início. Quando chego já existe uma ideia do caminho a seguir e de como avançar. Houve grande envolvimento de todos os participantes e nós, arquitetos, queríamos ter a certeza de que correspondíamos aos anseios das populações”.

Na zona de Lisboa, como refere Ricardo Santos, foram construídos sobretudo blocos de habitação coletiva – que correspondiam à ambição da maioria dos moradores e que permitiam ligar os territórios e cerzir a cidade consolidada.

“Desenvolvemos a tipologia de bairro urbano, de baixa altura (rés-do-chão e três pisos), estabelecemos fogos-tipo e propusemos aos moradores a divisão interior das suas casas”.

“Os moradores eram da cidade, não queriam ser desterrados para a periferia”

A experiência proporcionada pelo SAAL, única em termos de participação das populações, legou uma “metodologia de trabalho” e “um saber construído”, segundo Ricardo Santos, que é essencial para pensar sobre os modelos contemporâneos de participação e sobre a necessidade de soluções para o Habitar (para o usufruto da habitabilidade).

O SAAL promoveu essa participação através da organização dos interlocutores principais em cooperativas de habitação económica ou associações de moradores, cabendo ao Estado um serviço de apoio com técnicos especializados (arquitetura, assistentes sociais e culturais, sociólogos) e a disponibilização financeira a fundo perdido através de empréstimos.

Como contou Eugénio Castro Caldas, soluções de autoconstrução ou de moradias evolutivas foram rapidamente colocadas de parte “porque os nossos interlocutores eram pessoas da cidade, mas que viviam em barracas ou que em casas degradadas”. Era justamente o caso do Fonsecas e Calçada – a Quinta das Fonsecas era um bairro de lata, e a Quinta da Calçada um bairro camarário provisório, sendo o restante território constituído por antigas quintas, “sem referências urbanas, mas delineado por uma antiga azinhaga em relação à qual se orientou a construção dos novos blocos” – em 1976, deu-se o início da construção de 314 fogos da Quinta das Fonsecas e de 301 da Quinta da Calçada.

Se o SAAL não tivesse aparecido, os moradores das casas provisórias do Calçadas teriam sido remetidos para a periferia da cidade, disse Castro Caldas. “A propriedade dos solos era a questão principal do SAAL, não a arquitetura, as pessoas não quererem ser empurradas para as periferias. Os arquitetos não abdicaram de fazer arquitetura quando era preciso, ouvindo as pessoas, não se demitindo de levar adiante o seu ofício, mas a arquitetura não era o principal. As pessoas queriam ver as coisas feitas, esse era o anseio maior”.

Na verdade, refere Ricardo Santos, a definição das chamadas Unidades Operacionais e a escolha dos terrenos teve a ver com a reivindicação dos moradores em permanecer nos mesmos sítios, o “direito ao lugar”, a “preservação da ideia de comunidade, de identidade local e de pertença”. E foi essa reivindicação e a tentativa de retirar às populações o poder de ficar em terrenos considerados valiosos que viria a fazer recuar os decisores, nomeadamente quando modelos de realojamento subsequentes como o PER não levaram aqueles anseios em consideração.

“O medo do poder popular foi um facto”

“Há uma luta das comissões de moradores pelos terrenos mais centrais, comissões com grau de politização bastante assinalável, que debatiam a vida democrática porque a luta pela casa é a luta pela cidade democrática”, disse Ana Drago, que salientou o efeito do livro publicado por José António Bandeirinha (“O processo SAAL e a arquitetura no 25 de Abril”), depois de anos de silêncio sobre o tema – que se tinham seguido a uma reflexão sobre o SAAL na época inicial da sua execução.

Ana Drago recordou que se mantém “uma persistência de localização dos núcleos mais degradados, mesmo com os programas posteriores para realojamento” e enfatizou o papel dos arquitetos no SAAL, como os atores principais para dar resposta aos levantamentos dos moradores e à reivindicação pelos solos que ocupavam. “O medo do poder popular urbano foi um facto e foram os arquitetos que lidaram com ele da melhor forma”.

As reivindicações dos moradores pelo direito à cidade, como refere Ricardo Santos, alargaram-se para outros campos rapidamente: para melhores equipamentos (creches, jardins, parques infantis, campos de jogos, cooperativas, balneários), para melhores transportes e acessos, pondo em causa interesses imobiliários e poderes das autarquias. Como escreve: “Esta ambição social, válida, acabaria por se revelar fatal”.

Mas permaneceu a clara ideia do direito à cidade, à arquitetura e ao lugar, como proposta de uma sociedade em que as pessoas tomavam o destino em mãos e o faziam de forma tão informada quanto reivindicativa.

Além dos textos de Ricardo Santos e Ana Drago, o livro tem depoimentos de Maria Proença – como Ricardo Santos contou “empenhou-se muito em que a ação dos moradores não fosse esquecida” – do arquiteto Filipe Lopes e da mulher, Bárbara Lopes, cujo arquivo tem sido fundamental para estabelecer pontos difusos da história do SAAL em Lisboa, e de Paula Marques (“E depois do SAAL?”). Tem, ainda, um levantamento fotográfico dos bairros construídos realizado em 2023 por Francisco Ascensão e um desdobrável com as operações construídas, não construídas, e com os muitos núcleos de casas degradadas que pediram intervenção e não tiveram resposta.

Apesar dos pedidos de intervenção que não tiveram resposta, Ricardo Santos diz que as operações SAAL de Lisboa tiveram uma capacidade de construção e de execução sem paralelo, e de que não se tinha noção até resgatar o material que agora pode ser lido e visto no livro.

O presidente da Secção Regional de Lisboa, Pedro Novo, abriu a sessão para dizer que a apresentação do livro se inclui numa estratégia de enriquecimento das espécies da Biblioteca, do conhecimento histórico do processo SAAL e do convívio entre alguns participantes, que compareceram para rememorar uma história com meio século, que projeta para o futuro imediato os novos problemas de habitação e de habitabilidade.

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